segunda-feira, 2 de abril de 2012

E-mail para minha amiga Lucia Gurovitz


Lucia, uma tia que não vejo há tempos convidou a gente pra jantar lá e como tou reformando casa no feriado, acho que vou abrir mão de comandar os trabalhos de Pessach  este ano.

Olha, acho que o mais bonito é o acender das velas, que é você – chefe da casa –   que faz com a cabeça coberta por um tecido. Castiçais bonitos e lenço lindo, isso é importantíssimo. Tem de ser no momento do por-do-Sol. Em casa, a gente costuma fazer às 19h , mas se as pessoas se atrasam muito na família de vocês marca pra mais cedo e não se preocupa em servir nada antes. Come-se e bebe-se muito durante o jantar.

Contar a história da passagem e saída do Egito de um jeito que as crianças possam entender eu ainda acho que é a verdadeira missão do Pessach e a razão de continuar fazendo. Mas essa parte, segundo a tradição, é dos homens. Normalmente é o chefe da casa quem conta. O Helio certamente não terá dificuldade de fazer um resumão, desses, sei lá, 100 anos de história entre as Sete pragas e a saída do Egito que se quer passar pras futuras gerações nessa noite.

O Zezé (ou a Flora), ou a criança mais nova da casa tem uma missão: perguntar por que essa noite é diferente das outras. Na minha casa fica valendo a criança mais nova  acordada, não emburrada, não morta de tédio e que saiba articular três palavras.

E esconder pedacinhos de matzá (a afikoman) dentro de lenços pela casa para as crianças procurarem (e encontrarem) depois do jantar é muito divertido. Eu aprendi que é uma alegria como encontrar o pão no deserto. Meus avós davam blocos de papel e canetinhas  hidrocor na própria noite só para quem encontrasse. E davam um jeito para que todos encontrassem. Lembro dos dias seguintes de Pessach como dias de desenhar até doerem os dedos. Eu talvez leve livrinhos ou qualquer outra coisa de papelaria para meus sobrinhos-primos, filhas e enteados. Vai tudo depender do que estiver em oferta na rua 12 de outubro, a minha nova 25 de março.

Taças para os rituais. Uma você deixa com vinho uma semana para o profeta entrar em casa. Nunca mais sai a cor de uva dela, então despeça-se. Os outros são para as passagens. Cada passagem tem um ou mais goles; às vezes taças inteiras. Então é bom ter suco de uva pras crianças e cunhados chatos. Eu tenho uma louça que era da minha avó, que eu uso só para o Pessach e por isso ela é a coisa mais koscher que carrego da família até hoje.

Ah. Toalhinhas no banheiro,  se você for fazer as lavagens das mãos. Eu prefiro suprimir essa parte sem culpa nenhuma. Afinal, a gente que viveu no deserto deve entender que, se o Leonardo Di Caprio só toma banho a cada 4 dias, como podemos nós lavar as mãos quatro a seis vezes durante um mesmo jantar? E molha o caminho da sala até o banheiro, maior melê. Minha ecologia interna também agradece essa atualização.

Beijos e bom rasga a meia!

(o subject original era "ghefilte fish")

segunda-feira, 19 de março de 2012

Culuna de ontem do Ferreira Gullar e a sensação de água sob a ponte quando citam o que escrevemos no século passado


FERREIRA GULLAR
Anti-Bauhaus
A exposição dos irmãos Campana no CCBB surpreende e encanta pela originalidade e riqueza
Ninguém permanecerá indiferente ao visitar a exposição dos irmãos Campana, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio.
Trata-se de uma retrospectiva que é, ao mesmo tempo, a seleção do que de melhor realizaram entre os anos de 1989 e 2009, quando esses trabalhos foram expostos no Vitra Design Museum, de Weil am Rhein, na Alemanha.
Ela se intitula "Anticorpos" e reúne peças de mobiliário, joias, instalações e obras de artes plásticas, numa rara demonstração de criatividade e audácia. Vendo-os, entende-se por que Fernando e Humberto Campana se tornaram nomes conhecidos e prestigiados no âmbito do design industrial.
Nascidos no interior de São Paulo -Humberto em Rio Claro, em 1953 e Fernando em Brotas, em 1961- ainda que um deles se tenha formado em direito e o outro em arquitetura, os dois deveriam se juntar, um pouco mais adiante, para constituir uma dupla voltada prioritariamente para o desenho de móveis e onde se revelariam excepcionalmente audaciosos e inventivos.
Embora sejam hoje conhecidos internacionalmente, ainda poucos os conhecem no Brasil. Basta dizer que levaram uma década, após esse reconhecimento, para ter uma primeira peça de sua autoria reproduzida aqui.
Na verdade, foi na Itália -para onde se haviam transferido no final da década de 80- que desenvolveram o trabalho de designers e obtiveram reconhecimento.
Ao que se sabe, uma luminária, intitulada "Estela", que expuseram em 1997, em Milão, bastou para lhes conferir posição de destaque na indústria italiana de design. Aqui, isto seria impossível, mesmo porque, naquela época, a presença do design no circuito de arte no Brasil era praticamente nenhuma, conforme observou Ana Weiss.
Ao contrário disso, a Itália -particularmente, Milão-, a partir de meados do século 20, tornara-se um dos campos mais propícios ao desenvolvimento artístico e mercadológico desse tipo de arte.
A exposição dos irmãos Campana, no CCBB, surpreende e encanta pela originalidade e riqueza das peças expostas, tanto pela variabilidade dos materiais utilizados (ou reutilizados) -que vão de cordas, cabos de plástico, madeira, borracha, pano, papelão- como pelo inusitado da concepção formal das obras expostas, sejam poltronas, cadeiras, mesas, camas ou luminárias, sem falar em objetos aparentemente sem qualquer função prática.
Mas o que essa exposição particularmente me revelou (ou me fez descobrir) foi uma inesperada relação, hoje, entre o design e a chamada arte contemporânea. Começa pelo fato de que ambos abandonaram as normas e os limites que os caracterizavam antes, no começo do século 20.
É interessante observar que, naquele momento, enquanto no âmbito das artes plásticas procedia-se à desintegração das linguagens estéticas, a Bauhaus, no campo do desenho industrial, redesenhava o mobiliário, substituindo o decorativismo superficial e excessivo mau gosto por formas limpas, determinadas pela estrita funcionalidade. E essa tendência se manteve por décadas, com poucas alterações.
Enquanto isso, as artes plásticas -à exceção da pintura geométrica que geraria o concretismo- seguindo a tendência anti-arte de Duchamp, abandonavam os suportes tradicionais e partiam para criar instalações e promover happenings.
Em consequência disso, uma parte da arte conceitual, passou a valer-se de toda e qualquer coisa ou material, para expressar-se, optando, em geral, pelo chocante e pelo deliberado mau gosto, que a caracterizaria como anti-arte.
Nada disso se encontra no que nos mostram Fernando e Humberto Campana. O que os aproxima da arte contemporânea é o descompromisso com quaisquer normas estéticas pré-estabelecidas. No caso deles, porque se trata de criar objetos funcionais -como poltronas ou luminárias ou cadeiras ou camas- em certos momentos essa funcionalidade é desconsiderada.
É quando a expressão se sobrepõe à função ou a subverte. Mas como, ainda assim, a poltrona continua poltrona -já que sua forma se mantém reconhecível-, escapa à arbitrariedade que caracteriza a arte conceitual. Pode-se dizer que eles são anti-Bauhaus mas não anti-arte.