quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Quadratura


Eu gosto do bar. Mas sempre encontro as pessoas.
Não gosta de gente? Tinha pensado em ir no cinema.
OWoody Allen tá caquético. Fala com espíritos de escritores dos anos 20.
É um conto de fadas o Meia-Noite em Paris.
É um conto de fadas ruim. Quer comer alguma coisa?
João e o Pé de Feijão é um conto de fadas ruim.
Não iria no cinema ver João e o Pé de Feijão.
O caldinho de abóbora com gengibre.
Ta doente?
Gengibre não é remédio, dear. Sua chave.
Brigado, quase não consegui entrar.
Eu quase não consegui sair. Quando cheguei naquela padaria do café mais doce do mundo me dei conta que tinha deixado a carteira com tudo dentro na mesa da sua sala.
Como você fez?
Entrei com a Congás. Brigada pela água, molhou um pouco a credencial da Mostra que tava no criado-mudo. Foi boa?
Não vi muita coisa
Não vou na Mostra há anos. Não aguento mais aquelas filas.
Não gosta de gente?
Olha só, estamos aqui há uma hora e ninguém veio te pedir autógrafo, tem mesas vazias e crianças silenciosas que não estão com um DVD embaixo do braço pra pedir pra você dizer o que acha do trabalho do semestre. É um bar legal
Mas eu preferia que a gente estivesse lá em casa
Gostei da outra noite.Parece que dormi com o signo e acordei com o ascendente; pena que sua casa fica no planeta Aclimação...
Sem roupa na minha cama. Tem TV pra gente ver filme.
Na Vila Ipojuca também tem TV
Saio cedo amanhã.
Eu também. A linha verde fica insuportável essa hora
Gente, né?
É.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Insônia

Pouca coisa me custou tanto como parar de fumar. Isso faz mais - bem mais - de dez anos e ainda hoje, em noites como esta, que a cama não me quer e eu quero tanta coisa, me lembro da dança daquele parangolé de fumaça que me distraía até o próximo pensamento. Com saudades.Que minhas filhas não passem por aqui. Ou passem um dia. Por ora, durmam bem, minhas estrelas.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

E-mail para minha amiga Lucia Gurovitz


Lucia, uma tia que não vejo há tempos convidou a gente pra jantar lá e como tou reformando casa no feriado, acho que vou abrir mão de comandar os trabalhos de Pessach  este ano.

Olha, acho que o mais bonito é o acender das velas, que é você – chefe da casa –   que faz com a cabeça coberta por um tecido. Castiçais bonitos e lenço lindo, isso é importantíssimo. Tem de ser no momento do por-do-Sol. Em casa, a gente costuma fazer às 19h , mas se as pessoas se atrasam muito na família de vocês marca pra mais cedo e não se preocupa em servir nada antes. Come-se e bebe-se muito durante o jantar.

Contar a história da passagem e saída do Egito de um jeito que as crianças possam entender eu ainda acho que é a verdadeira missão do Pessach e a razão de continuar fazendo. Mas essa parte, segundo a tradição, é dos homens. Normalmente é o chefe da casa quem conta. O Helio certamente não terá dificuldade de fazer um resumão, desses, sei lá, 100 anos de história entre as Sete pragas e a saída do Egito que se quer passar pras futuras gerações nessa noite.

O Zezé (ou a Flora), ou a criança mais nova da casa tem uma missão: perguntar por que essa noite é diferente das outras. Na minha casa fica valendo a criança mais nova  acordada, não emburrada, não morta de tédio e que saiba articular três palavras.

E esconder pedacinhos de matzá (a afikoman) dentro de lenços pela casa para as crianças procurarem (e encontrarem) depois do jantar é muito divertido. Eu aprendi que é uma alegria como encontrar o pão no deserto. Meus avós davam blocos de papel e canetinhas  hidrocor na própria noite só para quem encontrasse. E davam um jeito para que todos encontrassem. Lembro dos dias seguintes de Pessach como dias de desenhar até doerem os dedos. Eu talvez leve livrinhos ou qualquer outra coisa de papelaria para meus sobrinhos-primos, filhas e enteados. Vai tudo depender do que estiver em oferta na rua 12 de outubro, a minha nova 25 de março.

Taças para os rituais. Uma você deixa com vinho uma semana para o profeta entrar em casa. Nunca mais sai a cor de uva dela, então despeça-se. Os outros são para as passagens. Cada passagem tem um ou mais goles; às vezes taças inteiras. Então é bom ter suco de uva pras crianças e cunhados chatos. Eu tenho uma louça que era da minha avó, que eu uso só para o Pessach e por isso ela é a coisa mais koscher que carrego da família até hoje.

Ah. Toalhinhas no banheiro,  se você for fazer as lavagens das mãos. Eu prefiro suprimir essa parte sem culpa nenhuma. Afinal, a gente que viveu no deserto deve entender que, se o Leonardo Di Caprio só toma banho a cada 4 dias, como podemos nós lavar as mãos quatro a seis vezes durante um mesmo jantar? E molha o caminho da sala até o banheiro, maior melê. Minha ecologia interna também agradece essa atualização.

Beijos e bom rasga a meia!

(o subject original era "ghefilte fish")

segunda-feira, 19 de março de 2012

Culuna de ontem do Ferreira Gullar e a sensação de água sob a ponte quando citam o que escrevemos no século passado


FERREIRA GULLAR
Anti-Bauhaus
A exposição dos irmãos Campana no CCBB surpreende e encanta pela originalidade e riqueza
Ninguém permanecerá indiferente ao visitar a exposição dos irmãos Campana, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio.
Trata-se de uma retrospectiva que é, ao mesmo tempo, a seleção do que de melhor realizaram entre os anos de 1989 e 2009, quando esses trabalhos foram expostos no Vitra Design Museum, de Weil am Rhein, na Alemanha.
Ela se intitula "Anticorpos" e reúne peças de mobiliário, joias, instalações e obras de artes plásticas, numa rara demonstração de criatividade e audácia. Vendo-os, entende-se por que Fernando e Humberto Campana se tornaram nomes conhecidos e prestigiados no âmbito do design industrial.
Nascidos no interior de São Paulo -Humberto em Rio Claro, em 1953 e Fernando em Brotas, em 1961- ainda que um deles se tenha formado em direito e o outro em arquitetura, os dois deveriam se juntar, um pouco mais adiante, para constituir uma dupla voltada prioritariamente para o desenho de móveis e onde se revelariam excepcionalmente audaciosos e inventivos.
Embora sejam hoje conhecidos internacionalmente, ainda poucos os conhecem no Brasil. Basta dizer que levaram uma década, após esse reconhecimento, para ter uma primeira peça de sua autoria reproduzida aqui.
Na verdade, foi na Itália -para onde se haviam transferido no final da década de 80- que desenvolveram o trabalho de designers e obtiveram reconhecimento.
Ao que se sabe, uma luminária, intitulada "Estela", que expuseram em 1997, em Milão, bastou para lhes conferir posição de destaque na indústria italiana de design. Aqui, isto seria impossível, mesmo porque, naquela época, a presença do design no circuito de arte no Brasil era praticamente nenhuma, conforme observou Ana Weiss.
Ao contrário disso, a Itália -particularmente, Milão-, a partir de meados do século 20, tornara-se um dos campos mais propícios ao desenvolvimento artístico e mercadológico desse tipo de arte.
A exposição dos irmãos Campana, no CCBB, surpreende e encanta pela originalidade e riqueza das peças expostas, tanto pela variabilidade dos materiais utilizados (ou reutilizados) -que vão de cordas, cabos de plástico, madeira, borracha, pano, papelão- como pelo inusitado da concepção formal das obras expostas, sejam poltronas, cadeiras, mesas, camas ou luminárias, sem falar em objetos aparentemente sem qualquer função prática.
Mas o que essa exposição particularmente me revelou (ou me fez descobrir) foi uma inesperada relação, hoje, entre o design e a chamada arte contemporânea. Começa pelo fato de que ambos abandonaram as normas e os limites que os caracterizavam antes, no começo do século 20.
É interessante observar que, naquele momento, enquanto no âmbito das artes plásticas procedia-se à desintegração das linguagens estéticas, a Bauhaus, no campo do desenho industrial, redesenhava o mobiliário, substituindo o decorativismo superficial e excessivo mau gosto por formas limpas, determinadas pela estrita funcionalidade. E essa tendência se manteve por décadas, com poucas alterações.
Enquanto isso, as artes plásticas -à exceção da pintura geométrica que geraria o concretismo- seguindo a tendência anti-arte de Duchamp, abandonavam os suportes tradicionais e partiam para criar instalações e promover happenings.
Em consequência disso, uma parte da arte conceitual, passou a valer-se de toda e qualquer coisa ou material, para expressar-se, optando, em geral, pelo chocante e pelo deliberado mau gosto, que a caracterizaria como anti-arte.
Nada disso se encontra no que nos mostram Fernando e Humberto Campana. O que os aproxima da arte contemporânea é o descompromisso com quaisquer normas estéticas pré-estabelecidas. No caso deles, porque se trata de criar objetos funcionais -como poltronas ou luminárias ou cadeiras ou camas- em certos momentos essa funcionalidade é desconsiderada.
É quando a expressão se sobrepõe à função ou a subverte. Mas como, ainda assim, a poltrona continua poltrona -já que sua forma se mantém reconhecível-, escapa à arbitrariedade que caracteriza a arte conceitual. Pode-se dizer que eles são anti-Bauhaus mas não anti-arte.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cabelos brancos

Nunca aprendi a fazer arroz, nem passar camisa, nem pregar botão. E nunca me importei de verdade com isso; sou dessa geração de mulheres treinadas desde cedo pra se dar bem na profissão, na aparência e na conta bancária, que acreditam que é quase um atributo intelectual ser incompetente pras coisas domésticas. Mas encontrei cinco fios de cabelos brancos na minha cabeça. Cinco, porque parei de contar no quinto. Minha vó precisou ser uma velhinha de bengala pra ter cabelos brancos. Meu pai até outro dia não tinha. São os fios mais grossos da minha cabeça – da espessura que eu queria que fossem meus cabelos ainda coloridos, esses finos como os de uma criança. Uma criança, o espelho do elevador me contou ontem, que por distração, envelheceu.
Até que tentaram me avisar. Outro dia encontrei com um amigo que não via há mais de uma década. Ele disse, sorrindo como quem entrega uma flor, que meu sorriso é o mesmo, exclamação. Na hora pensei: “me restou o sorriso, como restam os dentes nas caveiras pra sempre, pra sempre rindo, mesmo mortas e em decomposição”. Há uns anos, um dos mais admiráveis admiradores de mulheres que já conheci, o querido e libidinoso Xico Sá, elogiou (ele, que é autor de outros elogios que guardo como joias pra velhice, cof, cof), soltou, a respeito da tatuagem que eu tinha acabado então de fazer: adoro tatuagens tardias. Eu tinha 32. A Andrea Martins criou um blog sobre a crise dos 40. Ela que tem cara de 30, pique de 20 e sorriso de 10. Mudar a cor dos cabelos é um dos ritos dessa temida e importante passagem, tá lá, descrito num dos divertidíssimos posts(é invejável, sempre tem coisa nova). Eu sempre pintei os meus porque gosto de cor e nasci, como minha mãe me disse uma vez, com uma paleta meio desmaiada.
Mas, decidi que se um dia quero ser uma vó sábia rodeada por dezenas de netos a ouvir histórias na varanda de algum lugar, preciso começar a cultivar desde já meu coque branco de Zilka Salaberry na pele de Dona Benta nos idos dos anos 80. A Loreal que me desculpe, mas não pretendo trocar minha nova auréola prateada (que ao que parece, se multiplica em progressão geométrica a cada noite sobre o travesseiro como gremilins na piscina) por nenhum Mel Natural Amadeirado que além de me deixar loira como a Grazi Massafera antes da gravidez, diz o cabelereiro, atenuaria minhas olheiras e marcas de expressão (por que ninguém reclama desse tipo de bullying de salão?). Nem em troca dos cafunés do Cauã. A não ser, claro, que como um sapo beijado, ele vire um Cauã grisalho que saiba preparar um arroz bem soltinho e bem temperado enquanto eu leio ou invento bobagem pras crianças. E que para sempre desrespeite os meus secretos e verdadeiros cabelos brancos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Separação

Acordei e almocei. E não almocei qualquer coisa: maxixe com pimenta, língua com chutney não sei de que (mas bom) e arroz. Com alho. Chá de alecrim com gengibre. Já tava enfiada na minha roupa de ir trabalhar no calor quando terminei minha refeição que foi de verdade a principal do dia. Dia de fechamento da revista. Dia de divórcio no centro da cidade. Da editora pro fórum, pela agorofóbica linha amarela do metro, depois de 12 páginas legendadas e liberadas, lia A Arte de Guerra pensando que bom que hoje a vida se resolve. Cheguei no João Mendes antes da hora, reparando nas luminárias Déco equipadas com as lâmpadas da minha cozinha. Comprei uma Coca-cola no Girafa´s que o dia tava quente e a doutora Eliana Sanches, minha devogada, meio atrasada. Quando me viu da porta do fórum, gritou, “de shorts não pode entrar aqui”.  Ali do lado eu já tinha posto o olho numa Barred’s com tudo sempre em promoção. Fomos voando, arranquei a primeira coisa comprida e cinza que vi na arara das saias de escritório, entrei dentro dela enquanto a vendedora tirava o alarme da mercadoria (imagino que com saia roubada também não se pode entrar no fórum João Mendes, pensei em dizer, mas por efeito do livro talvez, guardei a voz pro que viria depois). Na frente da sala da juíza da vara de família tava o Rê, tão fantasiado quanto eu: de camisa branca com cara de acabei-de-te-coprar-aqui-na-frente. Lembrei de quando fizemos as fotos pra Natura e ele apareceu no set travestido de um conjunto bege-nude-creme que fez a Maria dar um pulo: “quem é você e o que fizeram com meu verdadeiro padrasto?” Entramos – claro que eu decepei mais duas ou três cabeças das cobras da medusa de advogada que ele arrumou – e fechamos o ciclo, num documento, redigido durante longos 15 dias pelo supermegaescritório, salpicado de erros de ortografia. Acabou o casamento. E com ele, a guerra de meses. O amor tem uma coisa parecida com o vício: é tão fácil começar quanto é difícil encerrar. Nossa, como nos cortamos nesse caminho. Quando voltei pro metrô, me dei conta da exaustão e do alívio de mil toneladas que sentia no corpo. Voltei para o trabalho. Chorei pela primeira vez em meses.

domingo, 21 de novembro de 2010

Bebel que cidade comeu

Eu li Bebel que a cidade Comeu com 11 anos. Comprei (meu pai comprou pra mim) numa feira literária da escola que estudava, onde estava sentado com seu olhar caloroso sob a única sombracelha espessa seu autor, o Loyola. Saí dali com meu volume denso, um livro pesado, eu pensava no caminho, com orgulho da dedicatória tão pessoal de um autor que me parecia tão mais interessante do que a colega da mesa ao lado da feira, Ruth Rocha, de quem li tudo e gosto muito. Anos depois, quando tive a sorte de editar alguns textos do Loyola, lembrei de agradecer meu pai pela coragem e desembaraço, de não só permitir que eu saciasse aquela curiosidade fulminante por o que tinha por trás daquele par de sombrancelhas, como sair ao meu lado com a naturalidade de quem compra uma caixa de ciências para o filho. Sofri muito com as dores de Bebel durante a semana em que devorei o livro. E me senti responsável por poder ter acesso aquelas becos escuros e malcheirosos, às situações difíceis, dolorosas, opressivas e violentas, sem julgamento ou moral da história. Eu sabia que não haveria herói ou justiça automática que salvaria a modelo-atriz-etc Bebel daquele lamaçal de sujeição que a engolia. Era a dura realidade. Uma realidade urbana, suburbana. Sexo, mais que isso, os piores usos do sexo são temas desse livro. Mas com 11 anos, antes da internet, já tínhamos todos acessos a todo tipo de informação sexual que se quisesse em São Paulo: a madrugada, quando todos dormiam, eram cheias de programação pornô, as revistas mais engraçadas da época – Chiclete com Banana et al – traziam piadas com essas conotações, os policiais no baixo Augusta, antes do Espaço Nacional – depois Espaço Unibanco de Cinema – espancavam e ofendiam os travestis e prostitutos e prostitutas da rua Augusta com volume e clareza para qualquer criança entender quais eram seus piores medos. E o horário nobre era cheio de insinuações, que nos deixavam com flancos de dúvida onde cabem todas as fantasias. Por que então não “ler” uma ficção cheia de sentido, quase de denúncia sobre uma realidade tão comum às mulheres contemporâneas? Era como ler a bula de um remédio chamado realidade. A invenção de Bebel, com assinatura a lápis do Loyola, foi um dos meus grandes encontros com a vida que começava e, muito importante, uma das primeiras saciações literárias. A primeira de muitas que vieram a partir daí. Aprendi a nunca me intimidar diante de um texto sobre coisas que não conheço. Aprendi a nunca me intimidar.
Quando apareceu a primeira oportunidade de prostituição -- sao muitas nas vidas de todas, podem falar a verdade -- era claro pra mim do que aquilo se tratava. Não me ofendi, não me senti tentada e em nada mudou minha admiração e carinho pelas minhas colegas de faculdade que simplesmente nao eram a fim de trabalhar 12 horas por dia pra pagar a facu e se vestir em baciada do Promocenter. Respodi, "ih, nem tenho roupa" e pedra em cima. Aprendi com Bebel. Aprendi com Loyola. Aprendi com meu pai que a gente deve ensinar a nadar, em vez de incutir o medo na água funda nas criancas.
Mandar recolher os 100 Melhores Contos Brasileiros do ensino fundamental e médio é tirar o remo, o barco, a vista do horizonte das crianças com acesso aos ensinos fundamental e médio em São Paulo. O mais triste é que isso tem toda cara de decisão de profissionais formados pela escola deixada pela ditadura, que conseguiu – olha a prova aí – deixar na escuridão uma geração e meia de brasileiros, que cumprem seus deveres a partir dos mesmos critérios com que educam os filhos, entregues às "oficialmente liberadas para menores de 12 anos" séries de TV, que tratam de “valores” como popularidade, consumo e outras histerias emprestadas, como fundamentalismo fashion, que faz tantas Bebéis no país.