domingo, 21 de novembro de 2010

Bebel que cidade comeu

Eu li Bebel que a cidade Comeu com 11 anos. Comprei (meu pai comprou pra mim) numa feira literária da escola que estudava, onde estava sentado com seu olhar caloroso sob a única sombracelha espessa seu autor, o Loyola. Saí dali com meu volume denso, um livro pesado, eu pensava no caminho, com orgulho da dedicatória tão pessoal de um autor que me parecia tão mais interessante do que a colega da mesa ao lado da feira, Ruth Rocha, de quem li tudo e gosto muito. Anos depois, quando tive a sorte de editar alguns textos do Loyola, lembrei de agradecer meu pai pela coragem e desembaraço, de não só permitir que eu saciasse aquela curiosidade fulminante por o que tinha por trás daquele par de sombrancelhas, como sair ao meu lado com a naturalidade de quem compra uma caixa de ciências para o filho. Sofri muito com as dores de Bebel durante a semana em que devorei o livro. E me senti responsável por poder ter acesso aquelas becos escuros e malcheirosos, às situações difíceis, dolorosas, opressivas e violentas, sem julgamento ou moral da história. Eu sabia que não haveria herói ou justiça automática que salvaria a modelo-atriz-etc Bebel daquele lamaçal de sujeição que a engolia. Era a dura realidade. Uma realidade urbana, suburbana. Sexo, mais que isso, os piores usos do sexo são temas desse livro. Mas com 11 anos, antes da internet, já tínhamos todos acessos a todo tipo de informação sexual que se quisesse em São Paulo: a madrugada, quando todos dormiam, eram cheias de programação pornô, as revistas mais engraçadas da época – Chiclete com Banana et al – traziam piadas com essas conotações, os policiais no baixo Augusta, antes do Espaço Nacional – depois Espaço Unibanco de Cinema – espancavam e ofendiam os travestis e prostitutos e prostitutas da rua Augusta com volume e clareza para qualquer criança entender quais eram seus piores medos. E o horário nobre era cheio de insinuações, que nos deixavam com flancos de dúvida onde cabem todas as fantasias. Por que então não “ler” uma ficção cheia de sentido, quase de denúncia sobre uma realidade tão comum às mulheres contemporâneas? Era como ler a bula de um remédio chamado realidade. A invenção de Bebel, com assinatura a lápis do Loyola, foi um dos meus grandes encontros com a vida que começava e, muito importante, uma das primeiras saciações literárias. A primeira de muitas que vieram a partir daí. Aprendi a nunca me intimidar diante de um texto sobre coisas que não conheço. Aprendi a nunca me intimidar.
Quando apareceu a primeira oportunidade de prostituição -- sao muitas nas vidas de todas, podem falar a verdade -- era claro pra mim do que aquilo se tratava. Não me ofendi, não me senti tentada e em nada mudou minha admiração e carinho pelas minhas colegas de faculdade que simplesmente nao eram a fim de trabalhar 12 horas por dia pra pagar a facu e se vestir em baciada do Promocenter. Respodi, "ih, nem tenho roupa" e pedra em cima. Aprendi com Bebel. Aprendi com Loyola. Aprendi com meu pai que a gente deve ensinar a nadar, em vez de incutir o medo na água funda nas criancas.
Mandar recolher os 100 Melhores Contos Brasileiros do ensino fundamental e médio é tirar o remo, o barco, a vista do horizonte das crianças com acesso aos ensinos fundamental e médio em São Paulo. O mais triste é que isso tem toda cara de decisão de profissionais formados pela escola deixada pela ditadura, que conseguiu – olha a prova aí – deixar na escuridão uma geração e meia de brasileiros, que cumprem seus deveres a partir dos mesmos critérios com que educam os filhos, entregues às "oficialmente liberadas para menores de 12 anos" séries de TV, que tratam de “valores” como popularidade, consumo e outras histerias emprestadas, como fundamentalismo fashion, que faz tantas Bebéis no país.

8 comentários:

  1. "Ensinar a nadar" é o ponto, Ana!!
    Lastimável esse recolhimento dos 100 melhores contos...

    Confesso que (ainda!) não li "Bebel que a cidade comeu" - e depois de ler seu post fiquei com uma vontade danada...

    Bjs!!
    ;-)

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  2. Pois é, querida. Tivemos essa sorte, mas a geração que vem talvez não tenha a mesma se crescer longe de livros importantes. Bebel é bom (pesado, meio triste), mas os 100 Contos são fundamentais...se achar o velho exemplar autorgrafado (carreguei ele por muitas mudanças de casa comigo!) te empresto.

    beijos :)

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  3. Oi Ana! Não conhecia seu blog e, pelo que percebi, é novo mesmo... Mas vim agradecer pelo seu comentário lá no Mãe do Bento, fiquei até com vergonha... Mas fico muito feliz de ter acertado no presente. Achei mesmo a cara da Lucia. Até a Maria poderá aproveitar né? hehe...
    Sobre este post, adorei o texto. Não conheço o livro, mas concordo que tudo se resume a ensinar a nadar. Fiquei indignada também com o fato de o CNE querer recolher o livro do Lobato das escolas. As gerações futuras ficarão emburrecidas com tanta ignorância.
    beijo!

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  4. Oi, Sarah sim o blog é recém-nascido :) Nasceu da minha indignação com o recolhimento dos livros nas escolas...

    Todos nós estamos adorando a história de Lucy. E não podia ter mais a ver com a nossa Lucy! Tou até querendo pirar um pouco e fazer um paralelo com o Mulheres que Correm com Lobos, vamos ver se a loucura passa ou se vira alguma coisa.

    Censura. Pois é. A equipe responsável por esse veto ao lobato já deve ser ela uma vítima da educação minguada pela Ditadura. Eles tão simplesmente passando pra frente, como se fosse uma doença degenerattiva e hereditária, essa tal ignorância.

    Me diz se o registro do Lobato, sobre a forma como os negros eram chamados, não é um documento de como era o interior do Brasil e a relação dos imigrandes com os ex-escravos? Enterrar isso é enterrar a história dura dos negros, as poucas porém grandes conquistas e a história do nosso estado, do nosso país. Enfim, nosso papel nesses casos é fazer o barulho que podemos, né?

    Beijos. Adorei seu blog.

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  5. estou aguardando mais alguns dos seus textos.

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  6. Não li - ainda - o livro, mas concordo com a idéia de leituras que instiguem desde cedo. No meu caso, o primeiro "espanto" aconteceu com "Ciranda de Pedra", lido no início da adolescência e nunca esquecido, mesmo que nem tenha entendido muito bem tudo o que acontecia, na primeira leitura - eu sentia mais o incômodo, o que foi suficiente pra marcar. E seu texto é ótimo.

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